Som da Natureza: Instrumentos Musicais Orgânicos Fortalecem a Resistência Cultural e Ecológica

Do berimbau ao didgeridoo, músicos independentes e artesãos reinventam a relação entre som, território e sustentabilidade

MATÉRIA

Redação - SOM DE FITA

6/16/2025

Em tempos de colapso ambiental e excesso tecnológico, um movimento silencioso vem ganhando força no subsolo da música contemporânea: a volta aos instrumentos feitos com materiais orgânicos e sustentáveis. Longe do mainstream, artistas e comunidades ao redor do mundo criam, tocam e ressignificam instrumentos que brotam da terra — feitos com bambu, cabaça, sementes, madeira reaproveitada, conchas e barro. Esses objetos sonoros ecoam culturas ancestrais e se transformam em ferramentas de resistência, meditação e expressão artística. Nesta matéria, mergulhamos nos instrumentos mais exóticos e simbólicos desse universo, nos impactos de seu uso e nos artistas que mantêm essas tradições vivas fora dos grandes holofotes.

A Música que Brota da Terra: Matérias-Primas Naturais e Sustentáveis

Desde os primeiros tambores em troncos ocos até as flautas feitas de ossos, a música sempre teve um pé fincado na natureza. Com o tempo, a indústria musical padronizou materiais como plástico, metal e resinas sintéticas, mas muitos criadores e coletivos têm resistido a essa lógica. Hoje, o bambu, por exemplo, volta a ser protagonista. Além de abundante e de crescimento rápido, é acústico por natureza, sendo usado para fabricar chocalhos, flautas e instrumentos de sopro de culturas orientais, africanas e latino-americanas.

O uso da cabaça também segue firme em diversas regiões do mundo. Esse fruto seco serve como caixa de ressonância em berimbaus, xequerês e kalimbas, sendo cultivado e tratado por artesãos que dominam a técnica há gerações. Em comunidades quilombolas da Bahia e do Maranhão, a construção desses instrumentos é acompanhada de rituais, histórias e ensinamentos coletivos — uma verdadeira herança oral e prática.

No sul do Brasil, o projeto Raízes Sonoras, de Porto Alegre, promove oficinas com jovens da periferia ensinando a fabricar instrumentos com matéria-prima local: bambus de terrenos baldios, sementes de árvores nativas, garrafas recicladas e fibras vegetais. A intenção é dupla: resgatar a criatividade musical e sensibilizar para a sustentabilidade urbana. Em comunidades indígenas como os Pataxó (BA) e Yawanawá (AC), a produção artesanal de maracás, flautas e tambores também permanece viva como forma de afirmar a identidade.

Essa escolha de materiais naturais reduz drasticamente a pegada ecológica da produção musical e reacende um elo entre arte, natureza e território. É também uma maneira de dizer não à lógica industrial e sim à escuta atenta daquilo que o planeta oferece de forma espontânea — som e alma em estado bruto.

Instrumentos Exóticos: Do Berimbau ao Didgeridoo

O berimbau, símbolo da capoeira e da diáspora africana no Brasil, é um dos instrumentos mais fortes quando se fala em resistência cultural. Sua origem remonta a arcos musicais africanos, e sua adaptação no Brasil colonial foi um ato de sobrevivência sonora. Cada berimbau é único, feito com biriba, arame e uma cabaça cortada. O som agudo e vibrante é conduzido por uma baqueta e um dobrão (moeda ou pedra), gerando variações rítmicas que coordenam os movimentos da capoeira.

Mestres como Mestre Nenel (filho de Mestre Bimba), Mestre Curió e Mestre Cobra Mansa são figuras essenciais na preservação do uso tradicional do berimbau fora dos circuitos comerciais. Além deles, grupos como Ilê Aiyê, Aláfia e AfroBank utilizam o instrumento em contextos de afirmação política e musicalidade afrocentrada.

Já o didgeridoo, instrumento sagrado dos povos aborígenes australianos, é feito de galhos naturalmente ocos e, às vezes, de bambu tratado. O som grave e contínuo é alcançado com a técnica de respiração circular. No circuito alternativo, músicos como o brasileiro Yogui Sound (RJ) e o paulista Pedro Malagueta utilizam o didgeridoo em contextos de meditação, terapias sonoras e rituais neoxamânicos.

Outro instrumento exótico é o bastão de chuva, presente em diversas culturas, feito com canas ou troncos ocos recheados de sementes ou grãos. O som gerado ao virá-lo simula a chuva e é muito usado em performances sensoriais e gravações de música experimental. O coletivo Sons do Cerrado, de Brasília, realiza shows e vivências usando apenas instrumentos feitos com materiais da flora local, incluindo bastões, tambores de barro e flautas de buriti.

O Impacto Sonoro e Cultural na Música Contemporânea Alternativa

No cenário musical alternativo, os instrumentos sustentáveis não são apenas uma questão estética, mas sim filosófica. A busca por timbres orgânicos, imperfeitos e texturizados representa um afastamento do som digital e uma aproximação do corpo, do espaço e do tempo real. Artistas do circuito experimental e etnomusical se apropriam desses sons para criar atmosferas imersivas e políticas.

O grupo Uakti, de Minas Gerais, é referência absoluta nesse campo. Criaram instrumentos próprios a partir de materiais como PVC, vidro, bambu e madeira, mesclando ciência acústica e criação artesanal. A banda mineira foi trilha para peças de teatro, dança contemporânea e rituais musicais, e mesmo após o fim do grupo, sua influência perdura em artistas independentes de todo o país.

Na Amazônia, projetos como o Nawa Ensemble combinam cantos indígenas com instrumentos construídos pelos próprios músicos, que coletam e tratam a matéria-prima sem agredir o bioma. O resultado são músicas que reverberam o espírito da floresta, em arranjos que misturam tradição e improvisação livre.

Coletivos como o Afroancestral (SP) e o Tribo Éthnos (PE) realizam vivências sonoras e performances que utilizam berimbau, tambores de terra, chocalhos de ossos e instrumentos de cerâmica. Suas propostas são ligadas ao resgate de matrizes africanas, indígenas e asiáticas, sempre com uma pegada ecológica e anticolonial.

Esses artistas não buscam apenas criar sons novos, mas restabelecer vínculos com a ancestralidade, o território e o meio ambiente. O instrumento passa a ser também manifesto: de quem somos, de onde viemos e para onde (não) queremos ir como humanidade sonora.

Conclusão

Os instrumentos musicais feitos com matéria-prima orgânica são mais que uma alternativa estética: são pontes entre mundos. Eles unem tradição e inovação, natureza e arte, silêncio e resistência. Em tempos de devastação ambiental e homogeneização cultural, ouvir um berimbau, um didgeridoo ou uma flauta de bambu é também escutar a terra falando. E são justamente os artistas do underground, os coletivos independentes e as comunidades tradicionais que têm carregado essa missão de manter vivo o som da natureza — com respeito, criatividade e rebeldia.

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