Quando BOB MARLEY Sobreviveu a uma EMBOSCADA: A Noite em que a MÚSICA Venceu as Balas

A tentativa de assassinato contra Bob Marley em 1976 expôs as feridas políticas da Jamaica, consolidou o cantor como símbolo global de resistência e levanta reflexões inquietantes sobre a polarização vivida hoje no Brasil.

Redação - SOM DE FITA

9/24/2025

Poucos episódios na história da música popular carregam tanto peso simbólico quanto a emboscada contra Bob Marley, em dezembro de 1976. Mais do que uma tentativa de assassinato contra um músico de sucesso, aquele ataque representou um esforço para silenciar uma voz que, em meio ao caos político e social da Jamaica, ecoava paz e união em tempos de guerra. Marley, já então conhecido mundialmente, não era apenas um artista; ele havia se tornado um emblema de resistência cultural e de esperança para os despossuídos, em um país assolado pela violência política e pela desigualdade social.

Na noite de 3 de dezembro daquele ano, a casa de Marley em Hope Road, Kingston, foi alvejada por tiros em uma ação que até hoje levanta debates sobre seus mandantes e motivações. Embora gravemente feridos, Marley, sua esposa Rita Marley e seu empresário Don Taylor sobreviveram. O atentado ocorreu a apenas dois dias de distância de um show histórico, o “Smile Jamaica”, promovido por ele com a intenção de reduzir a tensão entre facções rivais. Ao invés de recuar, Marley subiu ao palco ferido e transformou sua apresentação em um ato de resistência política e espiritual.

Esse episódio, que se tornaria um divisor de águas tanto na trajetória do artista quanto na história cultural da Jamaica, ecoa até hoje como exemplo de coragem e de como a música pode se tornar escudo em meio à violência. Ao mesmo tempo, sua história não deixa de nos lembrar do perigo que a polarização política representa para qualquer nação. O Brasil atual, marcado por disputas intensas, não está tão distante desse cenário, e o paralelo é inevitável.

Jamaica nos Anos 1970: Uma Ilha Dividida entre Política e Violência

Nos anos 1970, a Jamaica vivia um dos períodos mais conturbados de sua história. Embora fosse um país jovem, independente desde 1962, sua democracia já estava corroída por uma rivalidade feroz entre os dois principais partidos políticos: o PNP (People’s National Party), de orientação socialista, liderado por Michael Manley, e o JLP (Jamaica Labour Party), de viés conservador, sob a liderança de Edward Seaga. Essa disputa não se restringia aos palanques ou às urnas; ela se traduzia em violência nas ruas, em confrontos armados entre facções políticas e até em massacres em comunidades marginalizadas.

Nesse contexto explosivo, a música reggae se tornou um canal de expressão popular e, ao mesmo tempo, uma ferramenta de poder. Artistas como Bob Marley eram vistos como porta-vozes do povo, e suas mensagens de paz e união ganhavam interpretações políticas inevitáveis. Marley, apesar de sempre afirmar sua neutralidade partidária, era frequentemente associado ao PNP, sobretudo porque o partido no poder buscava capitalizar sua imagem internacional para reforçar suas políticas sociais.

O clima estava tão polarizado que até os sound systems, tradicionais festas de rua alimentadas por enormes sistemas de som, eram marcados por disputas políticas. Algumas comunidades apoiavam abertamente um partido e viam os bailes como territórios de influência, onde a música se misturava a discursos de poder. Nesse ambiente, o reggae transcendeu o entretenimento: tornou-se um elemento central da disputa por corações, mentes e votos.

Foi nesse cenário que Marley decidiu organizar o show gratuito “Smile Jamaica”, marcado para 5 de dezembro de 1976, apenas dois dias antes das eleições gerais. O evento tinha a intenção de unir o povo em torno da música, mas rapidamente passou a ser visto como um ato político, já que poderia beneficiar a imagem do governo de Michael Manley. Essa percepção foi suficiente para acender ainda mais o pavio da violência que dominava Kingston.

A Emboscada em Hope Road: O Atentado que Quase Silenciou Bob Marley

Na noite de 3 de dezembro de 1976, dois dias antes do show, a violência política bateu diretamente à porta de Bob Marley. Homens armados invadiram sua casa em 56 Hope Road, Kingston, onde ele ensaiava com sua banda, a The Wailers. O ataque foi rápido e brutal. Marley foi baleado no braço e também atingido de raspão no peito. Sua esposa, Rita Marley, levou um tiro na cabeça enquanto dirigia para casa, mas milagrosamente sobreviveu. O empresário Don Taylor foi atingido várias vezes, ficando entre a vida e a morte.

Apesar da intensidade da emboscada, ninguém morreu. Para muitos, esse fato foi quase um milagre, considerando a quantidade de disparos efetuados. Marley, com ferimentos visíveis, foi levado às pressas para atendimento médico, mas recusou-se a ceder ao medo. Dois dias depois, contrariando todas as expectativas, subiu ao palco no Smile Jamaica, onde se apresentou diante de milhares de pessoas. Durante mais de 90 minutos, Marley cantou como se fosse sua última noite. Ao final, mostrou os curativos e ferimentos ao público, em um gesto que se tornaria um dos momentos mais icônicos da história da música.

O atentado nunca foi plenamente esclarecido. Muitos apontaram gangues ligadas ao JLP como responsáveis, mas também surgiram suspeitas sobre a participação da CIA. O contexto da Guerra Fria tornava a Jamaica um ponto de interesse estratégico para os Estados Unidos, que viam com desconfiança a aproximação de Michael Manley com países socialistas como Cuba. Nesse cenário, Marley era interpretado como uma figura capaz de influenciar a juventude em direção a ideais que os EUA desejavam conter.

Logo após o show, Bob Marley deixou a Jamaica e se exilou em Londres, onde gravaria o lendário álbum Exodus (1977). O disco, considerado por muitos como sua obra-prima, trazia não apenas canções espirituais e românticas, mas também hinos de resistência como “Exodus” e “One Love”.

Consequências Culturais: Quando a Música se Transforma em Escudo

O atentado contra Bob Marley marcou um divisor de águas em sua carreira e na própria história da Jamaica. A coragem de subir ao palco ferido transformou Marley em um símbolo ainda mais poderoso, não apenas para seu povo, mas para o mundo. Sua figura ultrapassou os limites da música e se consolidou como uma força política e espiritual global.

A partir de então, Marley deixou de ser apenas um artista do reggae. Ele passou a ser visto como um líder cultural e político, cuja música representava resistência, unidade e esperança. O exílio em Londres lhe deu a oportunidade de expandir sua influência para além do Caribe, aproximando-o do mercado europeu e consolidando sua imagem como ícone mundial.

O álbum Exodus, nascido dessa fase turbulenta, é considerado um dos mais importantes da música do século XX. Canções como “Three Little Birds”, com sua mensagem de otimismo, e “Jamming”, com seu espírito festivo, convivem lado a lado com reflexões profundas sobre deslocamento, exílio e busca por liberdade. É impossível desvincular o peso emocional desse disco das balas que quase tiraram a vida de Marley.

Esse episódio também lançou luz sobre a fragilidade das democracias jovens e sobre o papel da cultura em momentos de crise. O reggae, que antes era marginalizado e associado apenas aos guetos de Kingston, tornou-se definitivamente uma linguagem universal. A emboscada contra Marley, paradoxalmente, ajudou a transformar o reggae em um patrimônio cultural do mundo.

Paralelos com o Brasil Atual: Polarização, Cultura e Resistência

Ao analisar a emboscada contra Bob Marley, é impossível não traçar paralelos com o momento atual vivido pelo Brasil. Embora os contextos sejam distintos, há pontos de contato evidentes entre a Jamaica dos anos 1970 e o Brasil do século XXI.

Assim como Kingston, marcada por divisões políticas e confrontos violentos, o Brasil de hoje enfrenta uma polarização extrema. O ambiente político é permeado por disputas ideológicas acirradas, que frequentemente transbordam para a violência simbólica e, em alguns casos, para agressões físicas. Artistas, jornalistas e influenciadores muitas vezes se tornam alvos de ataques por manifestarem suas opiniões ou por serem associados, mesmo que indiretamente, a determinado campo político.

As redes sociais amplificam essa divisão, funcionando como novos “bairros digitais” onde facções rivais se enfrentam diariamente. A intolerância, o discurso de ódio e a desinformação criam um cenário que lembra, em escala distinta, o ambiente tóxico que cercava Marley em 1976. Assim como na Jamaica, a cultura brasileira corre o risco de ser instrumentalizada ou sufocada por disputas políticas, quando deveria ser espaço de diálogo e união.

A lição deixada por Marley é clara: a música e a arte podem servir como pontes em tempos de crise, mas exigem coragem para enfrentar as pressões. O gesto de Marley ao subir no palco ferido continua sendo um lembrete poderoso de que a cultura não pode se curvar diante da violência ou da intimidação. Para o Brasil, essa história é também um alerta: proteger nossas vozes culturais é proteger a própria democracia.

Conclusão

A emboscada contra Bob Marley foi um episódio brutal que quase calou uma das vozes mais importantes do século XX. Mas, paradoxalmente, em vez de silenciá-lo, fortaleceu ainda mais sua mensagem de resistência e esperança. Sua decisão de cantar, mesmo ferido, transformou-se em um marco da história da música e da política.

Ao mesmo tempo, essa história nos lembra que a polarização política pode colocar em risco até mesmo os símbolos mais universais de paz. O Brasil atual, mergulhado em disputas intensas, encontra no exemplo de Marley um espelho desconfortável, mas também uma inspiração. Se a música pôde resistir às balas em Kingston, também pode servir como arma cultural contra a intolerância em qualquer lugar do mundo.

Bob Marley mostrando ferimento após atentado em dezembro de 1976, em Kingston, na Jamaica — Foto ReproduçãoYoutube

Bob Marley e o aperto de mão entre Manley e Seaga, em 1978 imagem do documentário Who shot the sherriff — Foto Divulgação

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