Personagens de games inspirados em figuras reais da ditadura e da Guerra Fria
Entre vilões carismáticos e heróis revolucionários, os videogames há décadas transformam figuras reais de regimes autoritários e conflitos políticos em ícones digitais — revelando o quanto o poder, a resistência e a opressão continuam a inspirar narrativas interativas.
Redação - SOM DE FITA
11/10/2025




A história recente da humanidade está repleta de ditadores, generais e agentes secretos que moldaram o mundo a partir do medo e da manipulação. E não demorou muito para que o universo dos videogames se apropriasse dessas figuras, adaptando-as em vilões, anti-heróis e líderes fictícios. Desde os anos 1980, quando a Guerra Fria ainda dividia o planeta em blocos ideológicos, os games começaram a usar o imaginário dos regimes autoritários para criar narrativas sobre poder, rebelião e resistência.
Essas inspirações não são simples coincidências. Elas fazem parte de um processo criativo que busca aproximar o jogador da realidade — mesmo dentro de mundos fictícios. Seja em ilhas caribenhas oprimidas por ditadores, cidades subaquáticas em colapso ou revoluções armadas que lembram levantes históricos, os videogames transformaram episódios sombrios da humanidade em experiências interativas cheias de camadas políticas e culturais.
Abaixo, exploramos alguns dos casos mais emblemáticos de personagens e jogos inspirados diretamente em figuras reais da ditadura e da Guerra Fria.
Antón Castillo: o espelho digital dos ditadores latino-americanos
Lançado em 2021, Far Cry 6, da Ubisoft, trouxe um dos vilões mais marcantes da última década: Antón Castillo, interpretado pelo ator Giancarlo Esposito. Ele é o ditador da ilha fictícia de Yara, um paraíso caribenho em colapso, governado com punho de ferro e cercado por guerrilhas que tentam derrubar o regime.
A inspiração é direta e declarada. Tanto o ator quanto os desenvolvedores afirmaram que o personagem é baseado em Fidel Castro e em outros líderes autoritários do século XX, como Nicolae Ceaușescu e até Adolf Hitler. Segundo Esposito, “a escolha óbvia foi estudar Fidel, mas também olhei para outros líderes que acreditavam estar salvando o próprio povo enquanto o destruíam”.
Yara, a ilha onde o jogo se passa, é uma versão ficcional de Cuba: carros antigos, embargo econômico, isolamento internacional e um governo que mistura nacionalismo, propaganda e brutalidade. Castillo é um homem culto, carismático, mas cruel — o típico ditador latino-americano moldado pelo trauma da Guerra Fria.
O game transforma esses elementos históricos em metáfora sobre o ciclo do poder. Ao mesmo tempo em que mostra a opressão e o autoritarismo, também retrata a esperança das guerrilhas, a luta do povo e o preço da revolução. É um espelho da história recente da América Latina, colocado nas mãos do jogador.
Sander Cohen: o artista tirano inspirado em regimes autoritários
Em 2007, BioShock apresentou ao mundo Sander Cohen, um dos personagens mais enigmáticos e perturbadores da série. Artista, poeta e músico da cidade subaquática de Rapture, Cohen começa como um gênio admirado, mas se transforma em um sádico megalomaníaco que usa a arte como instrumento de tortura e dominação.
Embora não seja baseado em um único líder, Cohen representa a síntese de uma mentalidade presente em muitos regimes autoritários: o culto ao gênio, a censura e o controle da expressão cultural. Seu comportamento remete a figuras históricas que acreditavam possuir uma missão estética e política — de Josef Stalin, que usou a arte como propaganda do Estado, a Benito Mussolini, que via a cultura como ferramenta de poder.
A cidade de Rapture, por sua vez, é uma alegoria do colapso das ideologias. Fundada como utopia libertária, acaba se tornando uma distopia de controle absoluto — uma metáfora clara sobre regimes que nascem com promessas de liberdade, mas mergulham no autoritarismo.
Sander Cohen é o símbolo desse declínio: um “artista” que, em nome da perfeição, destrói tudo ao seu redor. Sua presença em BioShock mostra que o totalitarismo também pode se esconder atrás do glamour e da cultura — uma crítica poderosa à manipulação estética dos regimes da Guerra Fria.



Sander Cohen, de Bioshock. O artista insano de Rapture, transforma sua genialidade em loucura e faz da arte um instrumento de poder | Imagem: Reprodução

Guerrilla War: quando Che Guevara e Fidel Castro viraram heróis de 8 bits
Antes de qualquer Far Cry ou Call of Duty, um arcade japonês já havia transformado a Revolução Cubana em jogo eletrônico. Lançado pela SNK em 1987, Guerrilla War coloca o jogador no papel de dois guerrilheiros que precisam libertar uma ilha tropical das mãos de um ditador militar.
Na versão original japonesa, os personagens têm nome e sobrenome: Fidel Castro e Ernesto “Che” Guevara. As versões ocidentais omitiram esses nomes para evitar polêmicas, mas a inspiração é inegável. As roupas, os discursos e até o cenário são uma reprodução clara da luta revolucionária cubana.
O curioso é que, apesar da censura de nomes, o jogo se tornou um sucesso, inclusive fora de Cuba. Ele trazia uma visão heroica da revolução — algo incomum em plena Guerra Fria — e colocava o jogador no papel de libertador, não de invasor.
A partir daí, os videogames começaram a flertar com temas políticos de forma mais explícita. Guerrilla War foi pioneiro em mostrar que até um simples jogo de ação poderia carregar ideologia e provocar reflexão sobre liberdade, poder e resistência — temas que dialogam diretamente com a cultura contestadora que o Som de Fita tanto valoriza.
A sombra da Guerra Fria nos games: poder, espionagem e paranoia
Os exemplos mais diretos são apenas a ponta do iceberg. Muitos outros jogos carregam o DNA da Guerra Fria — seja em enredos de espionagem, em ditaduras fictícias ou em conspirações de Estado. Metal Gear Solid, por exemplo, nasceu diretamente desse contexto, com Hideo Kojima transformando a paranoia nuclear e a manipulação midiática em narrativa. O protagonista Snake é, em muitos aspectos, um reflexo dos agentes secretos moldados pela tensão entre Estados Unidos e União Soviética.
Outro exemplo é Phantom Doctrine (2018), um jogo tático que coloca o jogador no comando de uma organização secreta durante os anos 1980, em plena disputa entre KGB e CIA. Cada missão reflete o medo constante da infiltração, das fake news e do controle ideológico — temas que continuam assustadoramente atuais.
Até mesmo franquias de tiro como Call of Duty: Black Ops utilizam cenários da Guerra Fria para explorar manipulação mental, operações secretas e conspirações políticas. A linha entre ficção e realidade é tênue: muitos dos experimentos e eventos citados nesses jogos realmente existiram, como o Projeto MK-Ultra, conduzido pela CIA entre 1953 e 1973.
Esses títulos mostram que a Guerra Fria não foi apenas um período histórico — foi uma fábrica de narrativas. E os videogames souberam aproveitar essa atmosfera de desconfiança e poder oculto para construir alguns dos personagens mais complexos e moralmente ambíguos da história dos jogos.
Conclusão: o passado continua jogando conosco
Os personagens inspirados em figuras reais da ditadura e da Guerra Fria não são apenas vilões ou heróis: são reflexos de um mundo que ainda tenta entender seus próprios traumas. Antón Castillo, Sander Cohen, os guerrilheiros de Guerrilla War e tantos outros não existem no vácuo — eles nascem das cicatrizes deixadas por governos autoritários e conflitos ideológicos.
Ao transformar ditadores e revolucionários em pixels, os games nos convidam a revisitar o passado sob outra perspectiva. E talvez essa seja a função mais importante da cultura digital: fazer com que a história, mesmo travestida de ficção, continue sendo lembrada — e, acima de tudo, questionada.
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