Os Samples Mais Inusitados Usados no Rap Brasileiro

De Roberto Carlos a trilhas de novela, veja como produtores e MCs reinventaram clássicos improváveis para criar hinos do rap nacional.

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Redação - SOM DE FITA

6/17/2025

O rap brasileiro sempre teve uma relação íntima com a arte do sample. Desde os tempos do vinil até os samplers digitais, a prática de recortar, rearranjar e transformar sons de outros estilos foi não apenas uma técnica criativa, mas uma forma de resistência cultural. E, em meio à vasta produção do gênero, alguns samples se destacaram por sua ousadia e originalidade.

Neste artigo, relembramos quatro dos exemplos mais insanos, surpreendentes e inusitados de samples que cruzaram as fronteiras do bom senso musical — e funcionaram. O resultado foram faixas marcantes que misturam crítica social com referências inesperadas da música brasileira.

Cada tópico desta lista traz um recorte real e verificável, com detalhes sobre o uso do sample, o contexto da faixa e a reação do público e da crítica. Um mergulho para quem curte as camadas ocultas por trás dos beats.

Prepare-se para reencontrar vozes conhecidas em lugares onde você nunca imaginaria ouvi-las — no meio de um verso afiado de rap.

1. Roberto Carlos no beat: MV Bill e o rei lado B

Poucos esperavam ouvir um sample de Roberto Carlos em um som de rap pesado. Mas foi exatamente isso que aconteceu com a faixa "Soldado do Morro", de MV Bill, lançada em 1999 no disco Traficando Informação. A base do beat usa como ponto de partida a música “As Curvas da Estrada de Santos”, de 1969, uma das baladas mais existencialistas da fase jovem guarda de Roberto.

A melodia da guitarra foi desacelerada e trabalhada para criar um clima tenso e melancólico, reforçando o conteúdo lírico da faixa, que fala sobre a realidade dos jovens negros nas favelas cariocas, envolvidos com o tráfico e o risco de morte. O contraste entre a suavidade dramática da música original e a crueza das rimas cria uma sensação inquietante.

O sample foi tão bem utilizado que virou tema recorrente de debates sobre a legitimidade do rap brasileiro em reinterpretar clássicos da MPB. Roberto Carlos, notoriamente protetor de sua obra, não comentou publicamente o uso, o que manteve a faixa circulando sem problemas legais — ao contrário de outros casos de sampling não autorizado no Brasil.

“Soldado do Morro” virou um clássico, e é considerado por muitos como um dos maiores relatos da violência urbana do país. A ousadia de usar Roberto Carlos nesse contexto é lembrada até hoje como um marco.

2. Chitãozinho & Xororó em loop: o sertanejo virou boom bap

Em 2009, o grupo curitibano ContraFluxo lançou a música “Tradição”, que fez história ao incorporar um sample de “Evidências”, clássico imortalizado por Chitãozinho & Xororó. A base começa com os acordes inconfundíveis da música, usados em um looping sutil e sombrio que remete mais ao rap nova-iorquino dos anos 90 do que ao sertanejo romântico das rádios.

A ideia de transformar um hino do amor sofrido em pano de fundo para uma crítica à hipocrisia e à alienação das classes médias conservadoras foi certeira. O refrão, desconstruído, aparece apenas como um sussurro melódico por trás da rima seca: “Você diz que me ama / Mas tem medo de mim”.

O grupo declarou em entrevistas que escolheu a música propositalmente como ironia, para “pegar a memória afetiva da classe média e fazer ela escutar o que não quer”. A faixa dividiu opiniões, mas foi amplamente celebrada em rodas de freestyle e saraus de poesia urbana no sul e sudeste do país.

Esse exemplo virou referência em oficinas de produção musical alternativa. Não há dúvida: transformar uma das músicas mais cantadas nos karaokês brasileiros em trilha de denúncia política é um ato de coragem estética.

3. Trilha de novela no rap? Sim, com Sabotage

O disco Rap é Compromisso!, de Sabotage, lançado em 2001, é recheado de samples, mas um dos mais inesperados aparece na faixa “Um Bom Lugar”, que utiliza elementos da música-tema da novela "Rainha da Sucata" (1990), composta por Marcos Valle, um ícone da bossa nova psicodélica.

O trecho usado tem uma harmonia delicada, quase jazzística, sobre a qual Sabotage despeja sua lírica sobre ascensão, otimismo e sobrevivência. A produção é de Daniel Ganjaman, que reconfigurou a melodia com uma levada minimalista e grave. A ligação com a novela não é direta, mas o sample vem da faixa "Estrelar", também de Valle, que já foi usada em trilhas da Globo.

A mistura provocou surpresa na época, já que era raro ver o rap brasileiro se aproximando de trilhas de novelas ou da MPB pop oitentista. Mas a genialidade de Sabotage e Ganjaman fez com que tudo soasse natural.

Hoje, essa faixa é considerada um clássico absoluto, e o uso de Marcos Valle no rap é visto como uma ponte entre duas gerações de músicos marginais que sempre estiveram à margem do sistema: os malandros da bossa e os poetas da periferia.

4. Caetano no grime: Baco Exu do Blues e a virada experimental

Um dos samples mais polêmicos e impressionantes da nova geração foi usado por Baco Exu do Blues na música “Flamingos”, de seu álbum Esú (2017). A faixa contém um trecho vocal distorcido de Caetano Veloso, retirado da música “O Leãozinho”.

Ao contrário do que se espera de uma canção tão delicada, Baco transformou o sample em um fragmento emocional, quase agonizante, soterrado por uma base densa e industrial. A manipulação do vocal é propositalmente suja, criando um clima de decadência romântica que casa com as letras sobre amor tóxico, luxúria e solidão.

Caetano chegou a declarar em entrevistas que achou “curioso e bonito” o uso de sua voz em contextos tão diferentes. O próprio Baco revelou que o sample foi uma forma de homenagear a música brasileira enquanto quebrava padrões e expectativas.

“Flamingos” se tornou um marco do rap experimental contemporâneo no Brasil, e inspirou outros artistas a buscar novas formas de fusão entre tradição e vanguarda. O sample de Caetano, longe de ser gratuito, virou símbolo dessa transgressão poética.

Conclusão

A arte do sample, quando feita com propósito e criatividade, revela mais do que referências — revela a identidade do artista. No rap brasileiro, esse recurso se mostrou uma ponte entre mundos distintos: sertanejo e favela, MPB e quebrada, novela e gueto.

Cada um dos exemplos acima representa mais do que uma curiosidade técnica: são gestos de reinterpretação cultural, política e estética. Eles mostram como o rap brasileiro é capaz de absorver e ressignificar a música nacional em toda sua complexidade.

Mesmo com riscos legais e desafios técnicos, os produtores e MCs continuam quebrando barreiras com os samples mais improváveis possíveis — e quanto mais louco, melhor.

E que venham os próximos recortes sonoros, porque no Brasil, até Roberto Carlos pode virar beat.

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