O SACI PERERÊ resiste: a batalha do folclore brasileiro contra o domínio do HALLOWEEN

Enquanto o 31 de outubro é dominado por fantasias importadas e abóboras iluminadas, o Dia do Saci tenta resistir como símbolo da cultura popular brasileira. A disputa entre as duas datas revela o quanto ainda precisamos valorizar nossas próprias lendas.

Redação - SOM DE FITA

10/31/2025

Todo 31 de outubro, as ruas, escolas e redes sociais do Brasil se enchem de abóboras iluminadas, fantasias de zumbi, caveiras mexicanas e festas temáticas estrangeiras. Poucos lembram que, nesta mesma data, se celebra o Dia do Saci, um símbolo autêntico do nosso folclore, criado justamente para contrabalançar o domínio cultural do Halloween.

Enquanto o Halloween se popularizou com força através do cinema, das redes sociais e do consumo globalizado, o Saci parece ter sido empurrado para os cantos do imaginário, tratado como uma curiosidade folclórica menor. Só que ele é muito mais do que isso: o Saci é símbolo de resistência, sabedoria popular e irreverência brasileira.

A data foi oficializada em várias cidades e estados brasileiros a partir dos anos 2000, com a intenção de valorizar a cultura nacional e despertar o interesse das novas gerações pelas nossas histórias. Mas a disputa é desigual. O Halloween é uma indústria bilionária, enquanto o Dia do Saci depende de iniciativas culturais e escolares que lutam para sobreviver.

O que está em jogo vai além de uma simples competição de festas: trata-se de uma questão de identidade cultural. Celebrar o Saci é celebrar a mistura que forma o Brasil — o encontro entre a herança africana, indígena e europeia. É lembrar que, antes das abóboras e das bruxas estrangeiras, havia um redemoinho girando nas matas, assobiando no escuro e pregando peças em quem esquecia de respeitar a natureza.

O Saci-Pererê: travessura, sabedoria e resistência

O Saci-Pererê é uma das figuras mais emblemáticas do folclore brasileiro. Um menino negro, de uma perna só, com um gorro vermelho e um cachimbo sempre aceso — símbolo da esperteza, da liberdade e da oralidade popular.

Ao contrário do que muitos pensam, o Saci não é apenas uma figura travessa: ele representa o espírito indomável da cultura brasileira. É o trickster, aquele que engana, mas também ensina; que provoca o caos, mas com um sentido profundo — o de lembrar que a natureza tem suas leis e que o homem precisa aprender a conviver com ela.

Suas origens misturam elementos africanos, indígenas e europeus. O gorro vem do barrete frígio, símbolo da liberdade nas revoluções; o redemoinho vem da mitologia tupi-guarani, em que espíritos das matas se manifestavam nos ventos; e o tom zombeteiro vem da tradição oral africana, onde figuras como o Anansi (a aranha) e Exu cumprem papéis semelhantes.

O Saci é a síntese viva do Brasil — mestiço, mágico e malandro. Um personagem que ensina, diverte e desafia. Monteiro Lobato, ao incluí-lo nas histórias do Sítio do Picapau Amarelo, ajudou a popularizá-lo entre as crianças do século XX. Mas, ao mesmo tempo, suavizou sua natureza original: o Saci dos contos antigos era mais selvagem, misterioso e ligado à mata, uma entidade que podia tanto ajudar quanto castigar quem desrespeitasse o equilíbrio natural.

Em tempos em que se fala tanto sobre meio ambiente, ancestralidade e descolonização cultural, o Saci parece mais atual do que nunca. Ele é o guardião ecológico do folclore, o símbolo da esperteza e da irreverência do povo brasileiro diante das imposições externas.

O Saci representa a alma do Brasil: mestiço, mágico e irreverente | Ilustração: Reprodução da Internet

Halloween no Brasil: globalização ou apagamento cultural?

Não há problema algum em se divertir com o Halloween — afinal, a troca cultural é natural num mundo globalizado. O problema começa quando essa troca vira substituição. Quando as escolas e as redes sociais promovem o Halloween como se fosse uma celebração universal, esquecendo que há um equivalente nacional na mesma data.

O Halloween vem da tradição celta do Samhain, celebrada entre 31 de outubro e 1º de novembro para marcar o fim da colheita e a chegada do inverno. Nos Estados Unidos, ganhou ares de festa popular, com doces, travessuras e fantasias. Quando chegou ao Brasil, foi adotado principalmente por escolas de inglês e shoppings, tornando-se um evento mais comercial do que cultural.

Enquanto isso, o Dia do Saci foi proposto em 2003 por um grupo de estudiosos e amantes do folclore — incluindo o pesquisador Mouzar Benedito — como forma de contrabalançar essa invasão cultural. Desde então, várias cidades passaram a oficializar a data, promovendo eventos educativos e culturais em defesa da valorização do folclore nacional.

Mas a verdade é que a luta é árdua. Em um país onde a mídia e as redes sociais são fortemente influenciadas por conteúdos estrangeiros, o Saci compete com vampiros, bruxas e super-heróis de Hollywood.

O contraste é simbólico: de um lado, o Saci — um espírito da floresta, de origem afro-indígena, descalço e travesso; do outro, o Halloween — industrializado, importado e massificado. Um representa o Brasil profundo e criativo; o outro, a força do consumo e da padronização cultural global.

Ainda assim, ambos podem conviver. O problema não é celebrar o Halloween — é esquecer o Saci.

Em meio à força da cultura estrangeira, o Saci resiste à sombra de vampiros, bruxas e abóboras | Ilustração: Vitor T.

Resgatar o Saci é resgatar o Brasil

Nos últimos anos, artistas, educadores e coletivos culturais têm se mobilizado para reacender o interesse pelo Dia do Saci. Em São Paulo, o evento “Saci Parade” reúne músicos, capoeiristas e brincantes de rua em celebrações folclóricas. Em outras regiões, escolas e ONGs promovem contação de histórias, oficinas de máscaras e até batalhas de rap inspiradas em personagens do folclore.

Esse movimento é mais do que nostalgia: é um gesto político e cultural. Quando o Brasil escolhe celebrar o Saci, ele afirma sua pluralidade, reconhece suas origens e valoriza o conhecimento popular que resiste ao apagamento.

Além disso, o Saci é uma figura moderna em muitos sentidos. Sua relação com a natureza o aproxima de debates ecológicos. Seu espírito libertário e zombeteiro ecoa nas expressões culturais urbanas — do funk ao rap, do cordel à literatura marginal. E sua capacidade de atravessar o tempo o transforma num ícone possível para a cultura digital, o que já vem sendo explorado em quadrinhos, games e animações.

Imagina um universo audiovisual que tratasse o Saci como um herói contemporâneo, como a Marvel faz com seus personagens? Ele já tem tudo: carisma, mistério, humor e raízes profundas.

Enquanto isso, o Dia do Saci continua sendo celebrado por quem entende que resgatar o folclore não é coisa de passado — é um ato de futuro.

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Neste 31 de outubro, enquanto as abóboras brilham e as bruxas se divertem, talvez seja bom parar e escutar o som do vento lá fora. Pode ser só o ar… ou pode ser o Saci passando, rindo da nossa distração.

O folclore brasileiro não precisa competir com o estrangeiro — ele só precisa ser lembrado, vivido e reinventado. Porque o Saci não morreu. Ele está escondido nos quintais, nos redemoinhos, nos contos das avós, nas canções populares e na curiosidade de cada criança que ainda pergunta: “E se o Saci realmente existir?”

No fundo, é isso que ele quer: continuar girando dentro da nossa imaginação.

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