O grito da FÚRIA FEMININA – As MULHERES que Marcaram o GRUNGE

Da fúria de Courtney Love à intensidade de Mia Zapata, o lado feminino do movimento que marcou os anos 90 foi tão barulhento quanto transformador.

Redação - SOM DE FITA

10/29/2025

A cena do grunge, tal como lembramos do fenômeno que explodiu em meados dos anos 1990 em Seattle, é frequentemente contada como a saga de jovens homens — guitarras distorcidas, flanelas largas e vozes que ameaçavam e choravam ao mesmo tempo. Contudo, reduzir essa história apenas às vozes masculinas é cometer uma amputação da memória musical. As mulheres também foram protagonistas. Elas não foram apêndices da história: foram nervos expostos, corpos viscerais que desafiaram a lógica e rasgaram o silêncio.

As origens e o apagamento da narrativa dominante

O grunge surgiu como um cruzamento de punk, hard rock e post-punk, marcado por guitarras sujas, vozes rasgadas e uma estética propositalmente desleixada. Seattle se tornou o epicentro desse movimento, que cresceu sob o espírito do faça-você-mesmo e do descontentamento juvenil.

Mas enquanto a mídia da época concentrava suas câmeras em nomes como Kurt Cobain, Eddie Vedder e Chris Cornell, outras artistas estavam igualmente moldando o som e a atitude do grunge — enfrentando, porém, obstáculos muito mais duros. O apagamento das mulheres na história do gênero é resultado direto do sexismo estrutural, da falta de visibilidade e da busca incessante da indústria por “o próximo Nirvana”.

Falar das mulheres do grunge é falar de resistência. É lembrar que, sob o mesmo teto onde se compunham hinos melancólicos, havia mulheres escrevendo suas próprias versões da dor, da raiva e da libertação.

Courtney Love, Kat Bjelland, Donita Sparks e Mia Zapata: vozes que desafiaram o silêncio

Courtney Love, à frente do Hole, foi um dos rostos mais emblemáticos dessa revolução. Carregando a dualidade de musa e monstro, ela transformou dor pessoal em manifesto público. Seu disco Live Through This (1994) continua sendo um retrato brutal da vulnerabilidade feminina diante da fama e do sofrimento. “Doll Parts” não é apenas uma música — é uma autópsia emocional escrita com delineador borrado e sangue. Courtney foi cultuada e odiada, mas, acima de tudo, foi necessária.

Kat Bjelland, líder do Babes in Toyland, arrastou o grunge para uma dimensão quase ritual. Seu álbum Spanking Machine (1990) é pura descarga elétrica: guitarras como lâminas cegas e gritos como exorcismos coletivos. Bjelland usava vestidos infantis e uma fúria descomunal — uma estética mal compreendida por muitos, mas que representava a perversão das expectativas de pureza impostas às mulheres. Sua performance era um teatro da crueldade que feria e libertava ao mesmo tempo.

Donita Sparks e Suzi Gardner, com o L7, deram ao grunge seu lado mais irônico, suado e político. O disco Bricks Are Heavy (1992) é uma pedrada sonora. “Pretend We’re Dead” se tornou hino de uma geração, mas faixas como “Shitlist” revelam que não havia espaço para reconciliação. Sparks transformava sarcasmo e fúria em resistência, cuspindo nas convenções de gênero com humor ácido e guitarras cortantes.

Mia Zapata, do The Gits, representou talvez a face mais trágica e comovente dessa cena. Sua voz, que misturava blues e punk, tinha o timbre das ruas de Seattle — áspero, sincero, devastador. Em 1993, Zapata foi brutalmente assassinada, e sua morte se tornou símbolo da vulnerabilidade e da violência enfrentada por mulheres no meio musical. Sua ausência ecoa até hoje como ferida aberta, lembrando que o silenciamento também pode ser literal.

Jennifer Finch, do L7, na contracapa do single Shove | Foto: Reprodução

Essas mulheres enfrentaram não apenas a dureza da indústria, mas também o preconceito e a hostilidade do público. Elas não pediam permissão — gritavam, quebravam, transformavam o palco em campo de batalha. E o preço, muitas vezes, foi alto.

Entre o grunge e o feminismo: diálogo, tensão e autonomia

O grunge feminino nasceu em paralelo ao movimento Riot Grrrl, que floresceu na mesma época e região, unindo punk e feminismo em bandas como Bikini Kill, Sleater-Kinney e Bratmobile. No entanto, as artistas do grunge trilharam um caminho próprio: menos panfletário e mais visceral. Suas composições não buscavam explicar o feminismo — elas o encarnavam.

Havia em Courtney Love a mesma entrega autodestrutiva de uma Sylvia Plath, transformando sofrimento em arte. Em Kat Bjelland, o espírito de Antonin Artaud, fazendo da performance uma experiência de crueldade libertadora. Em Donita Sparks, o humor corrosivo de uma Hilda Hilst debochada e indomável. Cada uma, à sua maneira, revelou que o grunge podia ser um espelho rachado da condição feminina.

Essas artistas criaram linguagens próprias para traduzir dor, desejo e fúria. Mesmo sem se alinharem formalmente ao feminismo organizado, seu simples ato de ocupar o palco e gritar já era político. O corpo feminino, tão historicamente controlado, tornou-se no grunge um instrumento de dissonância — ferido, desejante, autônomo.

Legado e resgate: reescrevendo a história do grunge

Relembrar essas artistas é devolver ao grunge a sua complexidade. Por muito tempo, a história foi contada por homens e sobre homens. Mas o gênero também pertenceu às mulheres que ousaram distorcer, desafinar e gritar.

O grunge foi, sim, uma geração de homens atormentados em flanelas. Mas foi também o grito feminino que rasgou microfones com dentes e unhas, escrevendo uma literatura de ruído e resistência. Como destaca a própria história do gênero, “muitas bandas lideradas por mulheres ou completamente femininas estão associadas ao grunge, e o movimento esteve intimamente ligado ao Riot Grrrl”. Hoje, há um esforço crescente para resgatar esses nomes esquecidos.

Artigos recentes, como The Women of Grunge: 5 Female Artists Who Influenced the Male-Dominated Genre, revisitam essa história e destacam que o grunge não seria o mesmo sem a força feminina por trás dos palcos. E é preciso dizer: sem essas artistas, o movimento talvez tivesse morrido de monotonia.

O legado dessas mulheres é imenso. Elas abriram espaço para novas gerações de roqueiras que hoje ocupam festivais e playlists. Bandas contemporâneas como Wolf Alice, The Beaches e Mannequin Pussy carregam ecos diretos dessa herança. Mesmo décadas depois, o grunge ainda pulsa — e a voz feminina é o coração desse som.

Conclusão

Quando revisitamos o grunge, percebemos que o silêncio também é construído. Rasgá-lo exige coragem, distorção e verdade. As mulheres do grunge não foram figurantes: foram protagonistas de uma revolução sonora e emocional. Gritaram, se feriram, criaram. E, com isso, provaram que o barulho também pode ser libertação.

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