
O CINEMA PSICODÉLICO dos anos 70 e sua influência na estética musical atual
Entre cores alucinógenas, sons distorcidos e visões de um mundo em mutação, o cinema psicodélico da década de 1970 moldou não apenas uma geração de cineastas — mas também a forma como a música é sentida, vista e produzida até hoje.
Redação - SOM DE FITA
10/22/2025




A década de 1970 foi um caldeirão de experiências culturais. O mundo pós-1968 vivia um misto de utopia e desilusão: as drogas psicodélicas já tinham deixado de ser novidade, o movimento hippie começava a se fragmentar e o cinema encontrava um novo terreno fértil para explorar a mente humana. Filmes como Zabriskie Point (1970), de Michelangelo Antonioni, El Topo (1970), de Alejandro Jodorowsky, e The Holy Mountain (1973), do mesmo diretor, representavam o auge da estética psicodélica — uma mistura de espiritualidade, surrealismo e contestação política.
A linguagem cinematográfica se libertava das narrativas lineares e mergulhava em experimentações visuais e sonoras que buscavam reproduzir sensações interiores, estados alterados de consciência e a fragmentação da realidade. A trilha sonora, claro, era parte essencial dessa viagem. Bandas como Pink Floyd, Jefferson Airplane e The Doors não apenas ilustravam os filmes, mas se tornavam coautoras da experiência sensorial.
Essas obras não queriam apenas ser vistas — queriam ser sentidas.
O cinema psicodélico dos anos 70 não se preocupava com o entendimento racional. Ele exigia entrega. As cores saturadas, os cortes bruscos e as sequências oníricas colocavam o espectador em uma espécie de transe, como se o filme fosse uma extensão das experiências lisérgicas e introspectivas da época. E essa estética, mesmo depois de meio século, continua ecoando fortemente em videoclipes, shows e produções musicais contemporâneas.
A ponte entre o som e a imagem: quando a música virou cinema
Nos anos 70, o cinema e a música começaram a se entrelaçar de uma forma que nunca mais seria desfeita. Os diretores começaram a entender o som como um elemento narrativo tão importante quanto a imagem. Ao mesmo tempo, os músicos perceberam o poder visual de suas obras — o que levaria, anos depois, à explosão dos videoclipes na era da MTV.
Filmes como Tommy (1975), ópera rock do The Who dirigida por Ken Russell, e The Wall (1982), de Alan Parker, baseado no álbum homônimo do Pink Floyd, nasceram diretamente dessa fusão entre linguagem cinematográfica e musical.
Mas antes de tudo isso, o terreno havia sido preparado por uma geração de cineastas que experimentavam sem medo. Ken Russell, por exemplo, misturava erotismo, religião e psicodelia em The Devils (1971) e Altered States (1980), criando um tipo de cinema sensorial que inspiraria clipes de bandas como Tool, Radiohead e Tame Impala décadas depois.
Essa mistura de imagens simbólicas, transições alucinantes e narrativas fragmentadas se tornou uma marca da psicodelia audiovisual. O som, por sua vez, passou a ser moldado para criar atmosferas imersivas. A música deixava de ser apenas trilha e passava a ser personagem.
No cenário atual, artistas como King Gizzard & The Lizard Wizard, Melody’s Echo Chamber, Flying Lotus e até nomes do pop alternativo como FKA Twigs exploram essa relação íntima entre som e imagem — um reflexo direto do cinema experimental dos anos 70.
Do psicodélico ao digital: as novas roupagens da viagem audiovisual
O que antes era feito com película, filtros coloridos e técnicas analógicas, hoje é recriado digitalmente em 4K e inteligência artificial. Ainda assim, o espírito é o mesmo: provocar sensações, expandir percepções e desafiar a lógica.
Nos videoclipes atuais, o legado do cinema psicodélico é evidente. Basta observar a estética caleidoscópica e fragmentada em trabalhos como “Feels Like We Only Go Backwards” do Tame Impala, ou os visuais de “Do I Wanna Know?” do Arctic Monkeys — que, embora mais minimalistas, carregam uma herança direta da experimentação visual dos anos 70.



Cena do filme TOMMY. Primeira Ópera rock da história, inspirado em álbum do THE WHO de 1969 | Foto: Reprodução

Na música eletrônica e no synthwave, o cinema psicodélico também deixou marcas profundas. O uso de projeções psicotrópicas em festas e festivais é uma versão contemporânea das experiências sensoriais criadas em salas de cinema há cinquenta anos. Artistas como Tycho, Boards of Canada e até o duo brasileiro Selvagem trabalham com atmosferas sonoras e visuais que evocam o mesmo tipo de imersão que The Holy Mountain causava no público em 1973.
O audiovisual contemporâneo, com suas ferramentas digitais e possibilidades infinitas, resgata constantemente essa herança. A diferença é que, hoje, a viagem pode ser criada sem substâncias externas: bastam um software de edição, um sintetizador e um bom senso estético para reproduzir o que antes era fruto de alucinações químicas e experimentação artística radical.
A psicodelia deixou de ser apenas um estilo — tornou-se uma linguagem.
Legado estético: quando o passado lisérgico inspira o presente sonoro
É curioso perceber como a estética dos anos 70 continua a definir o que consideramos “vanguardista” na música visual de hoje. Videoclipes de artistas como Khruangbin, Altin Gün, Mac DeMarco e Crumb parecem saídos diretamente de uma sessão de cinema psicodélico. O grão da imagem, as cores amareladas, a fluidez das formas — tudo ecoa a linguagem da contracultura.
A influência também se estende ao modo como a música é produzida. Muitos produtores contemporâneos buscam timbres “quentes” e analógicos, resgatando sintetizadores vintage e gravações em fita. Essa busca pela imperfeição sonora, pela textura orgânica, é um reflexo direto da era em que o cinema e a música estavam em constante mutação tecnológica.
Artistas como Kevin Parker (Tame Impala) e Adrian Younge se tornaram mestres nesse equilíbrio entre o retrô e o moderno, criando sons que parecem ao mesmo tempo antigos e futuristas — uma contradição muito próxima da experiência psicodélica original.
Além da sonoridade, a estética visual da psicodelia cinematográfica moldou todo um imaginário cultural. Do design de capas de álbuns à identidade visual de festivais como Desert Daze e Psicodália, o espírito dos anos 70 permanece vivo — às vezes reinventado, às vezes reproduzido quase que literalmente.
A ideia de que a arte deve expandir os sentidos e questionar a realidade segue sendo o fio condutor de boa parte da produção musical alternativa contemporânea.
No Brasil, esse diálogo também é visível. Bandas como Boogarins, Tagua Tagua e O Terno resgatam, cada uma à sua maneira, o experimentalismo visual e sonoro que marcou o cinema psicodélico. Seus clipes e performances exploram cores saturadas, narrativas simbólicas e uma atmosfera que combina misticismo tropicalista com tecnologia moderna.
É o cinema psicodélico reencarnado na cultura pop do século XXI — mais polido, mas ainda livre.
A psicodelia como estado permanente da arte
O cinema psicodélico dos anos 70 não foi apenas uma moda passageira. Ele representou um ponto de ruptura entre a razão e o delírio, entre a arte e a experiência sensorial.
Sua principal herança talvez não esteja apenas nas imagens hipnóticas ou nas trilhas experimentais, mas na liberdade criativa que inspirou — uma liberdade que atravessou gerações e hoje se manifesta em artistas de todos os estilos.
Na música contemporânea, a psicodelia se reinventou como um estado de espírito. Não é mais preciso viver uma experiência lisérgica para compreender o poder da distorção, do som espacial, das cores que dançam na tela.
O cinema dos anos 70 ensinou à música que ver e ouvir podem ser a mesma coisa — e é exatamente essa fusão sensorial que mantém viva a chama psicodélica, mesmo em plena era digital.
De Jodorowsky a Tame Impala, de Antonioni a King Gizzard, de Pink Floyd a Boogarins — o elo é claro: a arte continua sendo uma viagem sem destino certo.
E talvez seja justamente por isso que o cinema psicodélico dos anos 70 nunca tenha deixado de ser atual. Ele continua reverberando, pulsando e colorindo a música — agora, com novos meios, mas com a mesma intenção: libertar o olhar e o ouvido.
LEIA TAMBÉM:
Notícias, resenhas e cultura underground em destaque.
© 2025. Todos os direitos reservados.
Música, atitude e resistência em alta rotação.
Rebobinando o furdunço, Dando o play no Fuzuê.
Siga a gente nas redes sociais


