ISCA DE POLÍCIA: A Banda que Transformou a Vanguarda Paulista em Som e Resistência

De banda de apoio de Itamar Assumpção a referência da música independente brasileira, a Isca de Polícia construiu um legado de ousadia, crítica social e inovação musical que segue influente até hoje.

Redação - SOM DE FITA

8/26/2025

No final da década de 1970, São Paulo vivia um momento único no cenário cultural. A efervescência artística se espalhava pelos palcos alternativos, onde músicos, atores e escritores buscavam formas de expressão que fugissem do controle das grandes gravadoras e das regras rígidas da indústria cultural. Foi nesse contexto que surgiu a Isca de Polícia, banda formada para acompanhar o então emergente Itamar Assumpção, um dos artistas mais criativos e desafiadores de sua geração.

O nome escolhido, provocativo e irônico, sintetizava o espírito do grupo: inquieto, contestador e sem medo de provocar reflexões. A primeira vitrine dessa formação foi o Teatro Lira Paulistana, localizado no bairro de Pinheiros, que rapidamente se tornou o epicentro da chamada Vanguarda Paulista. Ali, a Isca de Polícia se apresentou ao lado de artistas como Arrigo Barnabé, Grupo Rumo e Língua de Trapo, todos comprometidos com a independência criativa e a produção autoral.

As apresentações da Isca no Lira não eram simples shows, mas verdadeiros espetáculos de experimentação. A banda combinava samba, reggae, funk, rock e ritmos africanos com letras afiadas e presença de palco marcante. Essa mistura desafiava rótulos e conquistava o público que buscava algo diferente da MPB tradicional e do pop comercial que dominava as rádios.

Primeiros Discos e a Afirmação de uma Estética

O primeiro registro fonográfico dessa parceria foi o álbum Beleléu, Leléu, Eu, lançado em 1980 pelo próprio selo Lira Paulistana. Gravado e distribuído de forma independente, o disco representou uma verdadeira ruptura com as normas da indústria musical. A sonoridade mesclava arranjos sofisticados, improvisos criativos e letras que transitavam entre o humor e a crítica social. Com canções que se tornariam emblemáticas, o álbum se consolidou como um marco da música brasileira independente, sendo posteriormente reconhecido por críticos e pesquisadores como um dos trabalhos mais importantes da época.

Três anos depois, em 1983, veio Às Próprias Custas S/A, gravado ao vivo e lançado também de forma independente. Esse álbum capturou a energia crua das apresentações da banda, registrando arranjos ousados e interpretações intensas. O repertório mantinha a fusão de ritmos e o discurso crítico, mas agora com um peso adicional: o Brasil vivia a transição do regime militar para a abertura política, e a arte tinha um papel fundamental nesse momento de mudança.

Esses dois trabalhos não apenas consolidaram a parceria entre Itamar e a Isca, mas também definiram uma estética que se tornaria sinônimo de autenticidade, resistência e liberdade criativa. Em um mercado acostumado a moldar artistas para caberem em fórmulas pré-estabelecidas, a banda mostrava que era possível trilhar um caminho próprio e ainda assim conquistar relevância e reconhecimento.

Estilo, Identidade e Resistência Cultural

A Isca de Polícia nunca foi apenas uma banda de apoio. Cada integrante tinha voz ativa no processo criativo, colaborando com arranjos e experimentações que ampliavam as possibilidades sonoras. Isso resultava em uma música que, embora coesa, mantinha a imprevisibilidade e a ousadia como características centrais.

A influência da banda não se limitava ao aspecto musical. A postura cênica e o discurso das canções faziam parte de uma estratégia artística que desafiava normas sociais e questionava estruturas de poder. Essa combinação de música e mensagem deu à Isca de Polícia um lugar único na história da música brasileira.

Fora dos grandes meios de comunicação, a banda construiu sua base de fãs principalmente por meio de apresentações ao vivo e do boca a boca. Essa relação direta com o público ajudou a criar um vínculo duradouro e uma aura de culto em torno do grupo. Mesmo sem grandes investimentos promocionais, a Isca de Polícia tornou-se uma referência para artistas que buscavam independência e autenticidade.

A estética visual também era cuidadosamente pensada. Figurinos, iluminação e postura no palco eram usados como elementos narrativos, reforçando a atmosfera teatral que permeava os shows. Essa atenção aos detalhes ajudava a criar experiências imersivas, nas quais música, performance e mensagem se uniam de forma indissociável.

A Vida Após Itamar e o Legado Duradouro

A morte de Itamar Assumpção, em 2003, representou um momento de luto profundo para a música brasileira. Para a Isca de Polícia, foi o desafio de seguir em frente sem a figura central que havia inspirado e guiado o grupo por mais de duas décadas. Ainda assim, a banda optou por não encerrar suas atividades. Ao contrário, decidiu preservar e reinterpretar o legado de Itamar, mantendo vivas suas músicas e, ao mesmo tempo, abrindo espaço para novas criações.

Essa nova fase ganhou força em 2017, com o lançamento de Volume 1, o primeiro álbum autoral da Isca de Polícia sem Itamar. O trabalho contou com participações de nomes consagrados como Arnaldo Antunes, Arrigo Barnabé, Zeca Baleiro e Tom Zé, provando que a banda mantinha sua relevância e capacidade de dialogar com diferentes gerações de artistas. As novas composições mantiveram a ousadia e a mistura de estilos que sempre caracterizaram o grupo, mas também mostraram uma maturidade adquirida ao longo de décadas de estrada.

Mais de quarenta anos após sua formação, a Isca de Polícia continua a ser um símbolo de resistência cultural. Sua história é um exemplo de como a independência artística pode se transformar em um ato político e de como é possível construir um legado sólido sem abrir mão de princípios. Para músicos e fãs, a trajetória da banda é um convite permanente a desafiar padrões, abraçar a experimentação e manter viva a chama da criatividade.

Banda Isca de Polícia em sua formação atual. Foto: Divulgação

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