Entre o prazer e a dor: Por que amamos filmes que nos fazem mal?
O fascínio humano pelo sofrimento na tela: entre o desconforto, a catarse e a busca por sentido
Redação - SOM DE FITA
11/6/2025




Há algo de estranho e profundamente humano em gostar de filmes que nos fazem sentir mal. Não é de hoje que o público se fascina por narrativas que provocam desconforto, medo, angústia ou tristeza. De clássicos como Réquiem para um Sonho e Dançando no Escuro até produções recentes como Beau Tem Medo, Joker e O Poço, o cinema vem explorando as fissuras da experiência humana — e nós, paradoxalmente, voltamos a esses filmes como quem visita uma ferida antiga.
Mas o que nos leva a buscar justamente aquilo que deveria nos repelir? Por que escolhemos assistir a histórias que nos deixam esgotados, chorando ou em silêncio após os créditos?
A resposta passa por várias camadas — psicológicas, culturais e até biológicas. O desconforto, quando mediado pela arte, nos dá uma sensação de controle sobre o caos. Ao assistir à dor alheia na tela, experimentamos emoções intensas sem correr riscos reais. É como uma montanha-russa emocional: o medo e o sofrimento estão ali, mas sabemos que, no fundo, estamos seguros no nosso sofá.
Esse tipo de experiência é chamado de catarse — termo cunhado por Aristóteles para descrever a purificação emocional que ocorre quando o público se envolve com uma tragédia. Ao chorar por personagens fictícios, lidamos indiretamente com as nossas próprias dores.
Em outras palavras, gostamos de filmes que nos fazem mal porque eles nos fazem sentir vivos.
O cérebro e o caos: a ciência por trás do sofrimento prazeroso
Pesquisas em neurociência ajudam a explicar esse fenômeno. Quando assistimos a cenas intensas, o cérebro libera uma mistura complexa de substâncias — entre elas, dopamina, adrenalina e endorfinas. A dopamina, associada à recompensa e ao prazer, é paradoxalmente ativada em contextos de medo ou tristeza quando há uma expectativa de aprendizado ou superação.
Ou seja: quando um filme nos causa sofrimento, mas termina com algum tipo de resolução — mesmo que amarga —, o cérebro interpreta isso como uma experiência valiosa. Estamos, de certa forma, “treinando” nossas emoções.
Estudos também mostram que pessoas que assistem a filmes tristes tendem a sentir mais empatia e gratidão logo depois da sessão. Isso acontece porque o sofrimento ficcional reativa memórias e sentimentos pessoais, ajudando-nos a reorganizar o que sentimos e como vemos o mundo.
É por isso que muitos espectadores descrevem um tipo de prazer melancólico ao rever filmes como Clube da Luta, O Pianista, Her ou Manchester à Beira-Mar. Essas obras não confortam, mas transformam. Elas nos tiram o chão para depois devolvê-lo, rachado, porém mais real.
O cinema de sofrimento, portanto, não é apenas um exercício de masoquismo estético — é uma forma de educação emocional. Ele nos convida a lidar com o incontrolável, a aceitar a dor como parte da existência e a entender que o incômodo também é uma forma de beleza.
A cultura do sofrimento: por que o público quer sentir o que não sente na vida real
Vivemos numa era de hiperconforto emocional. As redes sociais, a publicidade e o entretenimento de massa vendem uma imagem de felicidade constante, feita de filtros, cores suaves e finais felizes. Nesse contexto, filmes que nos fazem mal funcionam quase como um antídoto.



Filmes tristes podem despertar empatia e gratidão ao nos reconectar com nossas próprias emoções | Cena do filme "O Pianista": filme dirigido por Roman Polanski

Eles devolvem à arte o papel que sempre teve: o de provocar, incomodar e expor o que a sociedade prefere esconder. É o cinema que encara a realidade sem maquiagem, que não tem medo de mostrar o colapso mental, a solidão, o desespero, a violência ou a falência moral.
O público, consciente ou não, busca isso como quem busca autenticidade.
Quando assistimos a um filme como Midsommar, Anticristo ou A Lista de Schindler, sentimos que estamos vendo algo verdadeiro, cru, humano. Essas obras não estão preocupadas em nos fazer sentir bem — elas querem nos fazer sentir.
Além disso, existe um componente social. Filmes que causam desconforto geram debates, discussões e interpretações. É comum sair de uma sessão assim e precisar conversar com alguém, como se o filme fosse um espelho de algo que ainda não sabemos nomear.
Em tempos de isolamento emocional, essas narrativas oferecem justamente o oposto: uma ponte entre experiências individuais.
Por outro lado, há quem argumente que esse consumo de sofrimento é também um sintoma do nosso tempo — uma espécie de anestesia reversa. Quando tudo parece banal e superficial, o choque se torna o último recurso para sentir alguma coisa.
A arte que não consola: o papel dos filmes que doem
Filmes que nos fazem mal têm um papel fundamental na história do cinema. Eles estão nas margens do sistema, mas também no centro das grandes obras. De Taxi Driver a Bicho de Sete Cabeças, de O Sacrifício do Cervo Sagrado a Cidade de Deus, essas histórias desafiam o espectador a confrontar seus próprios limites morais e emocionais.
São filmes que não oferecem redenção, que não explicam o mundo — apenas o mostram como ele é: imperfeito, injusto e, às vezes, cruel. E é justamente por isso que são tão necessários.
O cinema não nasceu para ser apenas entretenimento. Ele também é uma forma de resistência, um espaço onde podemos lidar com a dor sem fugir dela. Quando um filme nos deixa mal, ele está cumprindo uma função vital: quebrar a ilusão de que tudo precisa ser confortável, simples e feliz.
A arte que dói é, muitas vezes, a que mais nos ensina. Ela escava dentro de nós, revela fragilidades e obriga o espectador a olhar para o abismo — e, no reflexo, reconhecer-se.
Essa é a beleza de obras como Dogville ou O Filho de Saul: elas não querem ser gostadas. Querem ser lembradas.
Conclusão: o cinema como espelho da dor e da vida
Amar filmes que nos fazem mal é, em essência, amar a verdade da condição humana. Nenhum de nós é feito apenas de alegrias, e talvez o cinema que dói seja justamente aquele que fala com a parte mais honesta de nós.
Essas histórias nos libertam da obrigação de sermos felizes o tempo todo. Elas nos lembram que sentir dor também é viver, e que o sofrimento, quando compreendido, pode se transformar em sabedoria.
Afinal, o cinema é isso: uma lente através da qual enxergamos o que normalmente não conseguimos encarar. E, às vezes, o que mais precisamos não é de um final feliz — é de um espelho que nos devolva com todas as cicatrizes à mostra.
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