A Passeata Contra a Guitarra Elétrica: Quando a MPB Declarou Guerra ao Futuro

Como um protesto de 1967 revelou a crise de identidade da música brasileira em meio a guitarras, ideologias e contradições

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Redação - SOM DE FITA

6/12/2025

Em 17 de julho de 1967, um grupo de artistas da chamada Música Popular Brasileira tradicional protagonizou uma das manifestações mais controversas da história cultural do país: a Passeata contra a Guitarra Elétrica. O ato aconteceu na Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro, e reuniu nomes de peso como Elis Regina, Geraldo Vandré, Edu Lobo, MPB-4, entre outros. O protesto tinha como alvo declarado o uso crescente da guitarra elétrica na música brasileira — principalmente nos festivais de canção que fervilhavam na televisão da época.

Mas o que parecia um gesto de defesa da cultura nacional se revelou, com o tempo, um retrato das contradições internas de uma geração que lutava para manter sua identidade em tempos de mudanças aceleradas — musicais, sociais e políticas.

A polêmica: a guitarra como “inimiga da pátria sonora”

A passeata foi organizada por artistas alinhados com uma visão nacionalista da música, que viam na canção brasileira uma espécie de patrimônio cultural imune à “ameaça estrangeira”. Para eles, a guitarra elétrica simbolizava a invasão do imperialismo norte-americano, representado pelo rock, pelos Beatles, pelos ídolos jovens e pelos novos modos de produção musical.

Era o auge da Guerra Fria, e a música também era um campo de disputa ideológica. Dentro dessa lógica, defender o violão, os ritmos tradicionais e as formas mais “puras” da MPB era quase um dever patriótico. A guitarra era vista como corruptora, alienante, desnecessária.

Quem estava lá — e quem se arrependeu depois

O mais emblemático da passeata é que vários de seus participantes viriam a mudar radicalmente de posição pouco tempo depois. Entre eles, Gilberto Gil, um dos organizadores da manifestação, que no ano seguinte já estaria no palco com os Mutantes empunhando uma guitarra e defendendo, junto com Caetano Veloso, a fusão entre o erudito e o popular, o nacional e o estrangeiro, o rural e o urbano — nascia ali a Tropicália.

Caetano, que não participou do protesto, depois criticaria abertamente o movimento: “A passeata era uma espécie de manifestação de recuo. Era o medo do novo. A Tropicália surgiu para romper com isso”, declarou anos depois.

Outro nome central, Elis Regina, também mudaria de postura e passaria a abraçar arranjos mais modernos e elétricos em seus discos futuros.

A Tropicália como resposta direta

A explosão do Tropicalismo, logo em seguida, foi uma resposta direta àquele conservadorismo estético. Os tropicalistas defenderam que a música brasileira não deveria se fechar ao mundo — ao contrário, deveria absorver, misturar, deglutir e transformar. A guitarra elétrica, longe de ser uma ameaça, passou a ser tratada como símbolo da liberdade criativa.

Álbuns como Tropicália ou Panis et Circencis (1968) e Gilberto Gil (Frevo Rasgado) foram marcos dessa nova era. A crítica social, a psicodelia, o rock e o samba passaram a coexistir. E a guitarra elétrica, antes condenada, agora reinava em meio à distorção, poesia e experimentação.

A verdadeira disputa: estética, política ou ego?

Apesar do discurso nacionalista, muitos estudiosos e críticos sugerem que a passeata também foi movida por disputas de prestígio e espaço midiático. Os festivais estavam se tornando os maiores palcos da música brasileira, e os artistas da nova geração, como Mutantes, Gal Costa e os próprios tropicalistas, começavam a atrair o público jovem — e a ameaçar a hegemonia dos nomes consagrados da “velha guarda” da MPB.

Há também uma camada de crítica ideológica. A esquerda intelectual da época, ainda muito presa a uma visão “folclorizante” da cultura popular, não sabia lidar com o impacto de uma juventude urbana, conectada ao rádio e à televisão, que queria experimentar novos sons.

O legado: um equívoco necessário?

Com o distanciamento histórico, a passeata é vista hoje como um erro estratégico, mas também como um momento de inflexão necessário. Ela escancarou as tensões entre o tradicional e o moderno, entre o nacionalismo cultural e a abertura ao mundo, entre o passado e o futuro.

A guitarra elétrica venceu. Não só entrou de vez na música brasileira como se tornou parte central de obras consagradas. De Jorge Ben a Novos Baianos, de Raul Seixas a Chico Science, o instrumento foi ressignificado, abrasileirado, tropicalizado.

E, ironicamente, os próprios organizadores da passeata passaram a tocar — e até amar — o que antes tentaram barrar.

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