
A Lenda do Álbum Esquecido: A Redescoberta de “O Terço Ao Vivo” e os Bastidores do Rock Progressivo Brasileiro
Gravado em 1975 e lançado somente em 2000, o disco ao vivo da banda O Terço tornou-se um símbolo da negligência e da genialidade que marcaram a era progressiva no Brasil. Esta é a história completa, baseada apenas em fatos, de como uma fita esquecida se transformou em relíquia musical.
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Redação - SOM DE FITA
6/6/2025




O cenário musical brasileiro na década de 1970 era tão fértil quanto conflituoso. Em plena ditadura militar, a arte era vigiada, a censura imperava, mas a criatividade resistia com força. Ao mesmo tempo em que a música popular brasileira (MPB) ganhava status internacional com nomes como Chico Buarque, Caetano Veloso e Milton Nascimento, nas margens do mainstream florescia uma cena alternativa que, mais tarde, seria identificada como rock progressivo brasileiro.
Influenciado por movimentos europeus e norte-americanos, esse rock mais elaborado encontrava ecos em terras brasileiras com bandas como Som Nosso de Cada Dia, Terreno Baldio, Moto Perpétuo e, claro, O Terço.
O Terço: De Banda Beat à Vanguarda Progressiva
Fundada em 1968, O Terço passou por várias fases e formações até consolidar sua identidade progressiva. No início, tocavam um rock mais simples, próximo da Jovem Guarda e da psicodelia beat. Mas em 1973, com o lançamento do álbum Terço (também conhecido como “Terço II”), a banda deu um salto estético.
A entrada de músicos como Flávio Venturini (teclados e vocais) e Sérgio Magrão (baixo) levou o som do grupo a um novo patamar. A influência de bandas como Yes, King Crimson e Genesis se fazia sentir, mas com uma marca própria, incorporando melodias mineiras, letras introspectivas e um lirismo brasileiro muito particular.
O Show de 1975: Uma Noite Mágica na Galeria Metrópole
Foi nesse contexto que aconteceu, em 1975, um dos shows mais importantes da carreira do O Terço. O local era o Teatro da Galeria Metrópole, em São Paulo — um espaço cultural alternativo que abrigava peças, shows e manifestações artísticas de vanguarda. O ambiente intimista e experimental era perfeito para o tipo de música que o grupo propunha.
A apresentação foi registrada com equipamento profissional — um luxo para a época — com a intenção de lançar posteriormente um disco ao vivo. Naquele momento, o grupo já havia lançado o cultuado Criaturas da Noite (1975), um dos álbuns mais emblemáticos da história do rock brasileiro. A gravação do show capturava versões ao vivo de faixas desse disco e de outros trabalhos anteriores.
A Fita Que Sumiu: Entre o Esquecimento e o Milagre
Apesar da qualidade da gravação e do entusiasmo da banda, o disco jamais foi lançado. As fitas master, com toda a apresentação, foram arquivadas pela gravadora Continental e esquecidas em um depósito. Ninguém sabe ao certo o motivo. Há rumores de problemas contratuais, divergências internas e até desinteresse comercial da gravadora, que não via futuro naquele “rock complicado demais”.
Durante anos, o material foi considerado perdido. Nenhum membro da banda sabia do paradeiro das fitas. O público, por sua vez, nem sequer sabia que o show havia sido gravado. A história se transformou em mito.
Redescoberta e Restauração: O Renascimento Sonoro
Foi só no final dos anos 1990 que as fitas foram encontradas por acaso, durante uma reorganização no acervo da gravadora. Técnicos de estúdio, ao perceberem que se tratava de uma gravação ao vivo do O Terço em pleno auge, alertaram membros da banda, que não acreditaram de imediato.
Com apoio técnico e digitalização, o material foi cuidadosamente restaurado. O som cru, cheio de ambiência e improvisos, não apenas estava em bom estado como trazia momentos inéditos e interpretações poderosas.
Em 2000, o álbum finalmente foi lançado como O Terço Ao Vivo. A recepção foi calorosa: fãs, críticos e músicos saudaram o disco como um documento essencial da música brasileira.
O Valor Histórico do Álbum: Um Registro de Época
Lançado com mais de duas décadas de atraso, O Terço Ao Vivo se transformou imediatamente em um marco. Não só por registrar a formação mais celebrada da banda em plena forma, mas por representar um tipo de documento histórico: um retrato sonoro de um Brasil que vivia um dos seus momentos mais complexos politicamente, e onde a música ousava resistir de forma sofisticada e sensível.
A performance de faixas como “Hey Amigo” e “Tributo ao Sorriso” revela uma maturidade musical impressionante. As improvisações instrumentais, comuns no rock progressivo, ganham ali um tom quase ritualístico, dialogando com o que havia de mais avançado no prog europeu, mas com sotaque e alma brasileira.
A Formação Clássica: Quatro Gigantes no Palco
A formação registrada nesse disco é considerada a mais emblemática da história da banda: Sérgio Hinds na guitarra, Flávio Venturini nos teclados e vocais, Sérgio Magrão no baixo e Luiz Moreno na bateria.
Cada músico trazia influências distintas, mas a química no palco era inegável. Hinds, fundador e único membro constante da banda, sempre foi um apaixonado pelo rock britânico. Venturini trazia a sofisticação harmônica da música mineira e uma veia poética afiada. Magrão, que viria a integrar o 14 Bis posteriormente, era um baixista versátil, e Luiz Moreno dava ao conjunto uma pegada jazzística que aproximava o som do fusion.
Por Que Não Lançaram na Época?
Há várias teorias sobre o sumiço das fitas. Uma das mais aceitas é que a gravadora simplesmente não via valor comercial em um disco ao vivo de rock progressivo em um país que ainda vivia sob repressão e onde os ídolos populares cantavam samba, bolero ou MPB.
Outro fator pode ter sido a desorganização interna da indústria fonográfica brasileira, que frequentemente perdia arquivos, negligenciava artistas e falhava em preservar seu próprio acervo. Infelizmente, esse tipo de negligência não era exceção, mas sim regra.
O Reflexo em Outras Bandas: O Caso do Som Nosso e do Moto Perpétuo
O episódio do O Terço Ao Vivo reacendeu o interesse por possíveis outras gravações “perdidas” da mesma época. Bandas como Som Nosso de Cada Dia e Moto Perpétuo também tiveram seus legados comprometidos por lançamentos escassos ou má conservação de fitas.
O Som Nosso, por exemplo, lançou apenas dois discos — sendo que o segundo, Som Nosso, de 1977, foi massacrado pela gravadora, que o lançou contra a vontade da banda e com capas e mixagens alteradas. Já o Moto Perpétuo, banda de Guilherme Arantes antes da carreira solo, gravou apenas um LP em 1974 e depois se dissolveu, mas há relatos de fitas de ensaios e gravações ao vivo que nunca vieram à tona.
A Redescoberta do Rock Progressivo Nacional nos Anos 2000
Com o avanço da internet e a redemocratização do acesso à informação musical, os anos 2000 assistiram a um verdadeiro renascimento do interesse pelo rock progressivo brasileiro. Blogs, fóruns, fanzines e reedições em CD e vinil ajudaram a recontar a história do gênero com mais justiça.
O relançamento de O Terço Ao Vivo foi um dos marcos dessa fase. O disco passou a figurar em listas de melhores álbuns ao vivo do país e consolidou a reputação da banda como uma das mais importantes da história do prog latino-americano.
Além das Fronteiras: O Interesse Internacional
Curiosamente, muitos colecionadores e selos estrangeiros passaram a demonstrar grande interesse por essa fase da música brasileira. Gravadoras como a britânica Mr Bongo e a francesa Vampi Soul, especializadas em raridades, começaram a reeditar discos progressivos brasileiros com tiragens limitadas para o mercado europeu e japonês.
Muitos desses lançamentos incluíam livretos com explicações históricas, fotos raras e entrevistas com os músicos. O Terço Ao Vivo, com sua história quase mitológica, virou item de colecionador.
O Terço Hoje: O Legado Vivo de uma Era de Ouro
Sérgio Hinds manteve a banda ativa ao longo das décadas, com diferentes formações e fases, transitando entre o rock clássico, o folk e até releituras acústicas. Mas a memória do período progressivo — e especialmente do show de 1975 — continua sendo o ponto alto da trajetória do grupo.
Em entrevistas recentes, Hinds se refere àquele show como um dos momentos mais mágicos de sua vida. “Era como se a gente estivesse dentro de um sonho, tocando com a alma escancarada”, declarou à revista Rock Press em 2015.
O Papel da Memória Musical no Brasil
A história do O Terço Ao Vivo também escancara a fragilidade da memória musical brasileira. Enquanto em países como Inglaterra e Alemanha há arquivos públicos e instituições dedicadas à preservação do patrimônio sonoro, no Brasil ainda há muito a ser feito.
A negligência com acervos, somada à falta de investimento em cultura e à descontinuidade de políticas públicas, faz com que muitas fitas, partituras e obras-primas sigam esquecidas em porões, gavetas ou depósitos abandonados.
Um Apelo para o Futuro: Onde Estão as Outras Fitas?
O caso desperta uma pergunta incômoda, mas necessária: quantos outros shows lendários estão esperando para serem redescobertos? Quantos rolos de fita com apresentações históricas de bandas como Vímana, A Barca do Sol ou Casa das Máquinas seguem deteriorando em silêncio?
A redescoberta de O Terço Ao Vivo nos lembra que a história da música brasileira ainda está sendo escrita — e que muito do que vale a pena ainda pode estar escondido.
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