A influência da SECA e do SERTÃO nas letras e paisagens sonoras do NORDESTE

Entre a aridez e a resistência, a música nordestina transforma a dor da seca e a força do sertão em poesia, ritmo e identidade — do baião ao rock rural, do repente ao manguebeat.

Redação - SOM DE FITA

10/24/2025

O sertão nordestino não é apenas um espaço geográfico. Ele é, antes de tudo, um território simbólico, espiritual e poético. A paisagem seca, marcada pela escassez de água e pela dureza da vida, serviu de inspiração para algumas das mais belas e profundas obras da música brasileira. De Luiz Gonzaga a Elomar, de Alceu Valença a Fagner, o sertão aparece não só como pano de fundo, mas como personagem central — um espelho da alma de um povo que aprendeu a cantar o sofrimento e a esperança na mesma nota.

A seca, recorrente e devastadora, moldou não apenas o cotidiano do nordestino, mas também sua sensibilidade artística. A luta pela sobrevivência diante da ausência de chuva e do abandono político gerou um tipo de lirismo que mistura resignação e coragem. As letras de muitas canções falam de seca, fome, êxodo e saudade, mas sempre permeadas de uma beleza que nasce da resistência.

Luiz Gonzaga, o “Rei do Baião”, foi o maior tradutor dessa realidade em som. Canções como Asa Branca (1947), composta em parceria com Humberto Teixeira, tornaram-se hinos de uma dor coletiva. “Quando olhei a terra ardendo / qual fogueira de São João”, diz o verso que imortalizou o drama da seca. Mas há também um otimismo quase místico que sobrevive no mesmo repertório — a fé de que a chuva voltará, de que o sertanejo resiste. Gonzaga não só representou o sertão: ele o fez ouvir e sentir, com sanfona, zabumba e triângulo — os instrumentos que se tornaram símbolos da alma nordestina.

O sertão, portanto, é metáfora e denúncia. É o espaço da falta e da abundância: falta d’água, mas sobra ritmo, criatividade e resistência. E é justamente dessa contradição que brota uma das expressões musicais mais potentes do Brasil.

Da seca ao som: o ritmo como tradução da paisagem

A paisagem sonora do Nordeste é seca e pulsante, como o próprio chão rachado do sertão. O baião, o xaxado, o coco e o maracatu carregam timbres que remetem ao som da terra batida, ao trotar dos animais, ao vento que sopra entre os mandacarus. A própria escolha dos instrumentos — percussões de couro, sanfonas metálicas, triângulos ressonantes — reflete a aridez e o calor que moldam o ambiente sertanejo.

Os artistas nordestinos criaram uma linguagem sonora única a partir dessa paisagem. Em muitos casos, a seca não é apenas tema, mas estrutura musical. O baião, por exemplo, nasceu do compasso binário e do ritmo repetitivo que ecoa o trabalho braçal, o batucar do couro e a cadência das caminhadas longas sob o sol. Há um pulsar ancestral que liga o sertanejo à terra — e isso se manifesta tanto no som quanto na forma de cantar.

O músico e pesquisador Hermano Vianna já apontou que a música nordestina é uma das formas mais puras de tradução entre ambiente e expressão cultural. O som árido das sanfonas, o timbre metálico dos triângulos e as vozes cortantes dos cantadores não são meras escolhas estéticas — são respostas acústicas a um mundo duro e quente, que exige criatividade para ser habitado.

Além disso, o sertão e sua seca inspiraram não apenas a música tradicional, mas também vertentes contemporâneas. O rock rural de Zé Ramalho e Alceu Valença, por exemplo, trouxe a aridez para o contexto elétrico da guitarra. O mesmo fez o manguebeat nos anos 1990, ao misturar ritmos regionais com batidas urbanas e eletrônicas. A paisagem sonora do Nordeste, portanto, expandiu-se sem perder sua raiz: o som da resistência, o eco da seca.

A poesia da escassez: letras que florescem na adversidade

A seca sempre foi tema central da literatura e da música nordestina. Mas, mais do que retratar o sofrimento, as letras transformam a dor em poesia. Elas são testemunhos de uma vida que se recusa a sucumbir. Canções como Súplica Cearense (Gordurinha e Nelinho) ou A Volta da Asa Branca (Gonzaga e Teixeira) traduzem o sentimento de fé e perseverança diante da miséria. Há um lirismo singular em expressar esperança mesmo quando o chão racha e o gado morre.

O baião carrega no compasso o som do trabalho, do couro batucado e das longas caminhadas sob o sol | Foto: Reprodução

Elomar Figueira Mello, baiano do sertão de Vitória da Conquista, é um dos grandes arquitetos dessa poética. Sua obra une erudição e regionalismo, mesclando o português arcaico com o dialeto sertanejo. Em canções como O Violeiro e Arrumação, Elomar constrói verdadeiras epopeias rurais, onde o sertanejo é herói trágico e profeta. O mesmo acontece com Vital Farias, em composições como Saga da Amazônia e Ai que Saudade D’ocê, que ligam o sertão à consciência ecológica e ao sentimento de pertencimento à terra.

Já Zé Ramalho, outro filho da seca, fez do misticismo sertanejo um elemento cósmico. Suas letras, repletas de símbolos e arquétipos, evocam tanto o sofrimento da terra rachada quanto as dimensões metafísicas da existência. Avôhai é o exemplo perfeito: um grito psicodélico que nasce do barro e se eleva ao universo. Ele transforma o sertão em portal espiritual, em fonte de sabedoria ancestral.

Nas últimas décadas, artistas contemporâneos têm mantido essa tradição de traduzir a seca em lirismo. A pernambucana Isaar, o paraibano Chico César e o coletivo BaianaSystem incorporam elementos da paisagem sertaneja em narrativas urbanas e híbridas. A falta d’água, o calor e o isolamento tornam-se metáforas para questões sociais mais amplas — desigualdade, resistência e identidade. A música nordestina continua, assim, sendo o retrato mais honesto e poético do país profundo.

Entre tradição e modernidade: o sertão reinventado na música contemporânea

A influência do sertão e da seca atravessou gerações, mas não ficou presa à tradição. Ao contrário: ela se reinventa constantemente. A nova música nordestina — que vai do forró eletrônico ao pop experimental — ainda carrega as marcas do solo árido e do espírito resiliente. O que muda é a forma de traduzir essa herança.

Nos anos 1990, o movimento manguebeat, liderado por Chico Science e Nação Zumbi, redefiniu a relação entre o local e o global. Recife, símbolo da lama e do mangue, tornou-se o novo sertão — uma metáfora urbana da resistência. “Da lama ao caos, do caos à lama”, dizia Chico Science, sintetizando a mesma lógica que move o sertanejo: sobreviver criando, florescer no deserto. O maracatu e o coco, misturados a guitarras e batidas eletrônicas, mostraram que o Nordeste não é estático: ele é mutante, como a própria natureza que o desafia.

Hoje, artistas como Cordel do Fogo Encantado, Siba, Ana Frango Elétrico e Josyara continuam explorando essa dualidade. O grupo Cordel do Fogo Encantado, por exemplo, transformou o sertão em espetáculo poético, com performances que misturam teatro, percussão e narrativa oral. Suas músicas falam de seca, de fé e de magia — tudo em um tom quase ritualístico. Já Josyara, baiana de Juazeiro, usa timbres modernos e letras introspectivas para expressar o feminino e o interior nordestino de forma contemporânea e afetiva.

A presença do sertão na música urbana também se ampliou. O rap nordestino, representado por nomes como Rapadura Xique-Chico e Edgar, mescla o discurso da periferia com a ancestralidade do sertão. A seca, nesse contexto, deixa de ser apenas fenômeno climático para se tornar metáfora social — um reflexo das desigualdades que persistem.

Mesmo fora do Nordeste, artistas de outras regiões dialogam com essa simbologia. Baianos cosmopolitas, pernambucanos de São Paulo e cearenses no exterior continuam levando o som da terra rachada aos palcos do mundo. A seca e o sertão, longe de serem apenas temas regionais, tornaram-se linguagens universais sobre resistência e pertencimento.

O som que brota da falta

A influência da seca e do sertão nas letras e paisagens sonoras do Nordeste é, acima de tudo, a história de um povo que aprendeu a transformar ausência em arte. A aridez virou som, a dor virou poesia, e o desespero virou canto. A música nordestina não tenta escapar da seca — ela a enfrenta, a sublima, a traduz. E é justamente por isso que continua tão viva, tão atual e tão necessária.

Enquanto houver sertão, haverá música. E enquanto houver música, o sertão seguirá existindo — não apenas como território físico, mas como memória e metáfora de uma força ancestral. O som que brota da falta é o mesmo que sustenta a identidade de milhões. No fim das contas, o Nordeste nos ensina que, mesmo sob o sol mais cruel, sempre há uma melodia germinando no coração da terra.

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