7 Vezes em que Zé Celso Provocou o Brasil com sua Arte Selvagem

Ícone do teatro brasileiro, José Celso Martinez Corrêa fez do palco um campo de batalha poética, política e espiritual. Relembre momentos em que o Teatro Oficina virou o país de cabeça para baixo.

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Redação - SOM DE FITA

7/4/2025

José Celso Martinez Corrêa (1937–2023) não apenas dirigiu peças, mas criou um novo modo de viver e fazer teatro no Brasil. À frente do Teatro Oficina, que fundou em 1958, ele transformou o palco em arena sagrada, onde se misturavam política, erotismo, ancestralidade, delírio e poesia.

Artista radical, Zé Celso jamais se rendeu à censura, à lógica mercadológica ou às formas convencionais de se fazer arte. Sua obra é marcada por transgressão estética e simbólica, e o Teatro Oficina se tornou um dos espaços culturais mais importantes e insurgentes da América Latina.

A seguir, revisitamos sete momentos em que Zé Celso — com sua arte selvagem — chacoalhou estruturas e fez o Brasil se olhar no espelho com desconforto, riso, fúria e catarse.

1. “O Rei da Vela” (1967): o início da revolução tropicalista

Em 1967, Zé Celso e o Teatro Oficina encenaram a peça “O Rei da Vela”, escrita por Oswald de Andrade em 1933, mas nunca antes montada. A escolha do texto não foi por acaso: a crítica ácida ao capitalismo, ao colonialismo cultural e à elite brasileira caiu como uma bomba no cenário teatral da época.

Zé Celso radicalizou a encenação com elementos de circo, cabaré, teatro de revista e música popular, quebrando a chamada “quarta parede” e expondo o teatro como um ritual vivo. A montagem dialogava diretamente com o movimento tropicalista, que explodiria pouco depois na música.

Mais do que uma peça, “O Rei da Vela” foi um divisor de águas. Trouxe o escracho para o centro da cena, transformou o delírio em estética política e fez do Teatro Oficina um espaço de invenção absoluta. A partir dali, o teatro brasileiro jamais seria o mesmo.

2. A nudez como manifesto político nos anos 70

Durante os anos mais duros da ditadura militar, o Teatro Oficina se recusou a ceder ao medo. Enquanto muitos grupos optavam pela metáfora para driblar a censura, Zé Celso optou pela frontalidade — inclusive dos corpos. A nudez em cena passou a ser frequente, mas nunca como recurso gratuito.

Em montagens como Gracias Señor e Galileu Galilei, o corpo nu era símbolo de liberdade, de ruptura com o moralismo autoritário e de conexão com a ancestralidade. A presença da nudez, do erotismo e do transe performático era uma afronta direta ao regime e à cultura conservadora dominante.

Zé Celso entendia o corpo como território político. Mostrar a pele era desarmar o discurso da violência. Era dizer: o corpo não será propriedade do Estado, da Igreja ou da Família tradicional. Era teatro como libertação.

3. O incêndio do Teatro Oficina (1983) e a reconstrução como ato simbólico

O incêndio que destruiu o Teatro Oficina em 1983 foi interpretado por muitos como um atentado à cultura. Embora as causas nunca tenham sido totalmente esclarecidas, o episódio teve efeito devastador. Mas Zé Celso viu na tragédia uma oportunidade de renascimento.

Com apoio da arquiteta Lina Bo Bardi e do arquiteto Edson Elito, iniciou-se uma reconstrução que não visava restaurar o antigo teatro, mas criar um novo espaço — uma arquitetura teatral revolucionária. O projeto rompeu com a configuração tradicional, transformando o espaço cênico em uma passarela longitudinal cercada por arquibancadas, permitindo a imersão total do público.

O novo Teatro Oficina foi reaberto como um organismo vivo, em constante mutação. A reconstrução foi, na verdade, uma reinvenção: estética, política e simbólica. Um ato de resistência arquitetônica em plena São Paulo dos anos 1990.

4. A série “Os Sertões” (2002–2007): teatro como maratona épica

Inspirado na obra-prima de Euclides da Cunha, Zé Celso dirigiu a série “Os Sertões” entre 2002 e 2007. Dividida em cinco peças — A Terra, O Homem, A Luta, A Guerra e O Regresso — a montagem transformava os longos capítulos do livro em experiências cênicas que chegavam a durar mais de 7 horas.

Misturando teatro, dança, música, improviso, tecnologia, rituais indígenas e elementos afro-brasileiros, Zé Celso construiu um espetáculo total, onde atores e espectadores se fundiam em um fluxo quase hipnótico.

A saga de Canudos, liderada por Antônio Conselheiro no século XIX, foi revisitada como metáfora para o Brasil moderno: um país dividido, violentado e ainda em guerra consigo mesmo. Com essa obra monumental, Zé Celso levou o Oficina a festivais internacionais e reafirmou sua missão de fazer do teatro um território sagrado de memória, confronto e transformação.

5. A batalha contra Silvio Santos pelo terreno do Oficina

A partir de 2017, Zé Celso travou uma das disputas mais emblemáticas da cultura brasileira contemporânea: o embate com Silvio Santos, dono do terreno vizinho ao Teatro Oficina, que pretendia construir um empreendimento comercial no local.

Zé Celso denunciou que o projeto afetaria diretamente a estrutura do Oficina, sua iluminação natural e sua função como patrimônio cultural. A briga ganhou os jornais, mobilizou artistas de todo o país e resultou em ações no Ministério Público e no Conselho de Defesa do Patrimônio.

Para além do conflito jurídico, essa batalha escancarou um problema crônico nas grandes cidades brasileiras: a especulação imobiliária sufocando os espaços de cultura. Zé Celso defendeu o teatro como espaço de vida — contra o concreto, o silêncio e o lucro fácil.

6. A presença de ayahuasca em processos criativos e rituais teatrais

Nos últimos anos de sua vida, Zé Celso passou a se aprofundar em experiências espirituais e xamânicas. A ayahuasca, bebida tradicionalmente utilizada em rituais indígenas da floresta amazônica, passou a fazer parte de seus processos criativos e filosóficos.

Mais do que uma substância enteógena, a ayahuasca simbolizava para Zé a possibilidade de descolonizar o olhar. Ele defendia que o teatro precisava se reconectar com suas raízes rituais — e isso incluía ouvir os povos originários e suas práticas.

As encenações tornaram-se verdadeiros ritos de passagem. Para Zé Celso, não existia separação entre cena, vida e espiritualidade. O teatro era um corpo coletivo em transe, e seu ofício era guiar esse corpo para além das prisões do ego e do capital.

7. A encenação de “Roda Viva” em 2019: de volta ao campo de batalha

Mesmo aos 82 anos, Zé Celso seguia inquieto. Em 2019, voltou à direção de “Roda Viva”, texto clássico de Chico Buarque que o Teatro Oficina já havia encenado em 1968, em montagem histórica marcada por ataques de grupos paramilitares de extrema direita.

Mais de 50 anos depois, o contexto parecia ecoar o passado. Em meio à ascensão de discursos conservadores e ataques à arte, a remontagem de “Roda Viva” foi um gesto corajoso de Zé Celso. A peça, que ironiza a espetacularização da cultura e os mecanismos do poder, foi atualizada com uma linguagem vibrante e escancaradamente crítica.

A montagem mostrou que, mesmo em tempos sombrios, o teatro ainda pode ser resistência. Zé Celso, mais uma vez, provou que sua arte nunca envelheceu — ela apenas ficou mais urgente.

José Celso Martinez Corrêa foi muito além de um artista provocador. Ele foi um arquiteto da liberdade, um alquimista da cena e um dos maiores pensadores da arte brasileira. Sua obra jamais se curvou à lógica do consumo ou do consenso.

O Teatro Oficina permanece como templo e trincheira, onde o Brasil é encenado em sua forma mais crua — e mais bela. Revisitar esses momentos não é apenas lembrar Zé Celso, mas lembrar que o teatro, quando selvagem, ainda pode incendiar consciências.

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