35 Anos Sem Cazuza: Por Que Sua Voz Ainda Ecoa, Mas Não Como Ícone LGBT?

Mesmo sem se posicionar abertamente sobre questões LGBTQIA+, o cantor ajudou a romper o silêncio sobre a Aids no Brasil e continua influente na música e na cultura brasileira

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Redação - SOM DE FITA

7/9/2025

“Brasil, mostra a tua cara” — o refrão imortal de Cazuza ressoa novamente nas casas brasileiras, embalando a trilha da novela Vale Tudo, em exibição pela Globo. A canção, símbolo de crítica e rebeldia, foi escrita por Agenor de Miranda Araújo Neto, o Cazuza, falecido há 35 anos em decorrência da Aids. Mais de três décadas depois, sua obra ainda pulsa com força no imaginário popular.

A longevidade do impacto de Cazuza, segundo especialistas, vai além da música. Ela está também no legado cultural mantido por homenagens, regravações e projetos de memória. Um exemplo é a exposição “Cazuza Exagerado”, no Rio de Janeiro, que atraiu 17 mil visitantes nas primeiras semanas. Trata-se da maior já dedicada ao artista, cujo catálogo conta com 253 composições e 332 gravações, de acordo com o Ecad.

“Cazuza não perdeu a relevância artística e musical. Segue sendo lembrado através de filmes, livros e tributos”, afirma o relações públicas Horácio Brandão, um dos curadores da exposição. Nas plataformas digitais, ele mantém média de 3,8 milhões de ouvintes mensais no Spotify, em patamar comparável a nomes consagrados como Marisa Monte.

Voz de uma geração inquieta

Cazuza iniciou sua trajetória como vocalista do Barão Vermelho entre 1981 e 1985, antes de seguir carreira solo. Para o professor Rafael Julião, autor da biografia Cazuza: Segredos de Liquidificador, sua relevância está em ter dado voz a uma juventude em conflito. “Ele marcou o desejo de uma geração diante do sonho frustrado. Essa mensagem conserva uma potência”, diz o pesquisador da UFRJ.

Gisele Jordão, especialista em projetos culturais da ESPM, destaca como o artista encarnava as contradições da época. “Era poeta, roqueiro, rebelde e, paradoxalmente, extremamente vulnerável. Essa combinação permitiu que falasse de liberdade, afetos e contradições de forma única”, analisa.

Apesar de ter vivido abertamente sua bissexualidade, inclusive com passagens amorosas marcantes como a vivida com Ney Matogrosso — retratada na cinebiografia Homem com H —, Cazuza nunca se posicionou de forma explícita sobre causas LGBT. “Fui completamente apaixonado, mas era difícil conviver com os dois Cazuzas que havia nele”, relembrou Ney em 2024. “No lado público, se mostrava agressivo, louco, bêbado e cheirava muito pó. Já na intimidade, era o oposto. Foi uma das pessoas mais encantadoras que conheci.”

Ícone cultural, mas não ativista

A ausência de um ativismo explícito causa divergências sobre seu lugar como símbolo LGBTQIA+. “Gosto de Cazuza como compositor e cantor, mas discordo dele por seu mutismo e por não ter falado nada explicitamente sobre homossexualidade e movimento gay”, afirma o antropólogo Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia.

Mott acredita que Cazuza representava uma figura egodistônica, alguém que vivia sua sexualidade sem se engajar publicamente. Gisele Jordão, por outro lado, argumenta que o contexto da época influenciava esse silêncio. “Ele viveu sua bissexualidade com naturalidade e sem se esconder, num período de enorme preconceito”, explica.

Apesar disso, seu papel foi central na quebra de estigmas em relação à Aids. Em 1989, Cazuza estampou a capa da Veja, revelando sua soropositividade. Para Gisele, o ato teve um “impacto massivo”. “A simples existência de alguém como ele, jovem, famoso, talentoso e vivendo com HIV, já era um ato político potente.”

O filósofo e ativista Beto de Jesus concorda. Para ele, a entrevista foi “avassaladora”. “Trouxe a realidade de que a Aids estava atingindo todas as pessoas. Ele teve a coragem de revelar isso, falar das dificuldades e do estigma da discriminação.”

Legado que vai além da música

Durante 30 anos, a ONG Sociedade Viva Cazuza, fundada por seus pais Lucinha e João Araújo, deu continuidade a essa missão de conscientização, com foco no cuidado de crianças e jovens soropositivos.

Mais do que um roqueiro rebelde ou um ídolo pop, Cazuza permanece como um símbolo de inconformismo e verdade — mesmo que, para alguns, tenha deixado lacunas como representante da comunidade LGBTQIA+. Ainda assim, sua presença no imaginário coletivo brasileiro mostra que, quando se trata de arte e emoção, ele continua, sim, exagerado, intenso e vivo.

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